A DECISÃO MAIS DIFÍCIL.
O novo Código de Ética Médica traz em seu artigo 41 um avanço e ao mesmo tempo uma questão bioética das mais sérias enfrentadas pela classe médica no exercício de seu labor: o limite da vida humana.
Diz o artigo 41: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. O artigo veda ao médico abreviar a vida do seu paciente ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Artigo de capa da Revista Veja desta semana: A ética na vida e na morte, o assunto toca profundamente em um tema que já havíamos abordado em texto anterior no que se refere ao direito do paciente em partir para o outro plano, morrer ou desencarnar, como quer o entendimento de cada leitor, no seio de sua família, cercado pelos seus e o que é seu.
Oncologista há 26 anos tenho vivenciado essa dramática situação, como todo profissional da especialidade, que se dedica a acompanhar o seu paciente até o momento derradeiro. Muitos pacientes terminais me legaram suas lembranças, dolorosas, comoventes e engrandecedoras; de um profundo senso humanístico, rico acervo de conhecimentos do drama da psiquê humana frente a uma doença avassaladora lhe rouba a vida, o descontrui ao tempo que na grande maioria das vezes o transforma em um ser de luz. Uma velha vida se vai com a doença e um novo ser, alvo, rico de resignação e compreensão desponta, envergando, se o próprio paciente se permitir, o reluzente traje nupcial anunciado por Jesus.
O alívio da dor física e psicológica, a compreensão por parte da equipe de saúde e da família com aquele ser que em processo de adoecimento, tem sua vida virada de cabeça para baixo é fundamental. Desde o instante do diagnóstico do câncer, passando pelas terapias e até em alguns casos quando a doença avança célere e o paciente se torna terminal, apesar de todas às terapêuticas instituídas, é importante nos mantermos firmes no posto de terapeuta, orientador e às vezes amigo, porque não? Se muitas vezes no curso da doença o médico adentra o lar, o quarto, compartilha com a família a dor de estar perdendo o paciente, torna-se íntimo da família. Bem disse Albert Camus no diálogo entre o Médico e o Paciente, referindo- se às alvas cãs : “ Doutor, quem lhe deu esta experiência e, o Médico responde: O sofrimento”.
Felizmente há muitos casos de cura. Apesar de toda a avançada tecnologia que estamos presenciando com o despontar das novas drogas de ação molecular, a Cura vai além da resposta completa ao tratamento. A cura envolve uma complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana, na conceituação de Fritjof Capra no livro O Ponto de Mutação. Essa conceituação nos leva a necessidade transcendermos o físico, a doença orgânica e visualizar o ser integral em processo de crescimento. São reflexões bioéticas, espirituais que enriquecem o conhecimento da dimensão humana.
O diálogo, o preparo para a nova dimensão vivenciada pelo paciente na maioria das vezes auxilia sobremaneira a difícil transição. Os conhecimentos de tanatologia e abordagens de psicologia transpessoal além outras abordagens psicoterapêuticas, bem como a religiosidade são valiosos recursos que todo profissional que lida com o paciente terminal deveria ter. Infelizmente a grande maioria dos profissionais não recebeu treinamento para lidar com a morte. O próprio curso Médico carece de disciplinas que abordem o tema. Nem o estudante de Medicina, nem o Médico são treinados para lidar com a finitude de sua própria vida. Para aprender a auxiliar o paciente, compreendê-los em seus medos, anseios e angústias é necessário terapeutizarmos nossos próprios medos e a angústia das perdas.
A difícil tarefa de decidir sobre a vida e a morte de uma pessoa é uma sentença muitas pesada para a falível capacidade humana de julgar. Esta decisão é uma das “discussões mais delicadas de bioética”, como se refere no texto da Veja o Pediatra Gabriel Oselka: “Nenhum Código de Ética Médica jamais conseguirá contemplar a complexidade envolvida nas questões sobre a vida e a morte. Cada caso encerra em si milhões de outros casos”.